REFUGIADOS: EM BUSCA DE UM NOVO LAR
Imagine que você tem mais de 45 anos, é casado (a), tem filho (a) e vive em um país em desenvolvimento. As vidas financeira, profissional e pessoal estão estabilizadas. Então, há uma severa mudança e você se vê de frente com a urgente necessidade de sair de sua terra natal, para recomeçar em outro lugar, com língua e cultura diferentes da sua. Embora pareça algo improvável de acontecer, isso ainda ocorre no mundo. José Joaquin Rodriguez Alvarado (49) e Maria Elias El Warrak (53) são um casal venezuelano e vivem no Rio de Janeiro desde 2015. Parte dos 96 mil refugiados que chegam a terras brasileiras, eles vieram para o Brasil após uma crise política, econômica e humanitária se instalar na Venezuela em 2014. O número de pessoas que saem de lá é de cerca de 3,4 milhões, de acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). O destino escolhido pela maioria é a Colômbia, que já recebeu aproximadamente 1,1 milhão de venezuelanos.
“Começou uma virada econômica muito feia. Eu lembro que numa tarde não deu para comprar queijo, presunto e pão. Tive que pedir para o meu irmão para completar [o dinheiro] porque não deu. Nesse dia, eu fiquei preocupada. Você comprava hoje e amanhã era mais caro. Assim era para tudo.”
Em janeiro de 2015, ela e a família começaram o planejamento para deixar o país. Em setembro, ela, o marido, o enteado Juan Andrés (20) e o filho Juan Sebastian (10) deixaram a Venezuela com destino o Brasil . “Falavam que era difícil sair e eu respondia que era difícil, mas não impossível’", lembrou a mulher. José Joaquin e sua família visitaram o Rio em 2013 e 2014. Ao voltarem ao seu país de origem, a diferença era perceptível: “O que nós achamos que era uma normalidade, não era nada normal, era o anormal de uma situação que iria ou que tinha a possibilidade de ficar ainda pior na economia, no social e na segurança. Então, achamos que, pelo futuro dos nossos filhos, era melhor que tivessem uma realidade diferente da que tínhamos”.
O governo venezuelano entrou em declínio após a morte de Hugo Chávez, em 2013. Entretanto, o país sul-americano não é o único a enfrentar o problema migratório em larga escala. Segundo dados da ACNUR de 2017, cerca de 68,5 milhões de pessoas foram deslocados à força no mundo, sendo 25,4 milhões de refugiados e 3,1 solicitantes de refúgio.
Na saída de Venezuela, eles deixaram para trás a maioria de seus objetos pessoais e realizações profissionais.
“Quatro malas de 25 quilos, cada uma, mais a mala de mão de aproximadamente 10 quilos cada. Foram mais de 100 quilos que trouxemos da Venezuela. Com brinquedos do meu filho, roupa, sapatos, só isso. O restante ficou.”
Apesar de estar 6.575,4 quilômetros longe do seu país, ele continua acompanhando, internamente, a situação política de lá através das redes sociais: “No Twitter, grupo de WhatsApp, de venezuelanos, com amigos que me falam”.
Sua esposa contou que não vê perspectiva de melhora no cenário, principalmente pela disputa entre os partidos de situação e oposição no governo: “Um país com dois presidentes que está em ruína por completo, sem comida, medicamento, transporte público. Duas pessoas estão lutando, pensando que o mais importante é ser presidente do que ver o que está acontecendo com as crianças que estão morrendo. Os idosos estão morrendo de fome. Uma pessoa que você sabe, estava bem de saúde, e o peso de repente fica 30 quilos a menos. Eles estão lutando pela presidência. Parece coisa de criança. Quem está sofrendo? O povo! Eu acompanho o que está acontecendo na Venezuela com dor, sabendo que não vai acontecer nada. Se não tiver oposição reunida, na Venezuela não vai acontecer nada”.
FRONTEIRA FECHADA
Devido à fuga em massa, no início deste ano, o governo venezuelano fechou a fronteira com o Brasil. José, que entende bem sobre a travessia, contou ao grupo sobre trilhas que são usadas frequentemente por refugiados: "Você tinha que fazer uma trilha diferente, um percurso bem longo, de quase duas horas de diferença para chegar até posto fronteiriço do Brasil e o Brasil carimbava o documento que você levava contigo”.
Em agosto do ano passado, em Pacaraima, Roraima, houve um ataque de brasileiros a um acampamento de refugiados. Na época, cerca de 800 venezuelanos chegavam à cidade diariamente e os atos xenofóbicos se tornaram recorrentes.
“Se de repente chegam 15 pessoas querendo morar aqui, você não pode falar para elas ‘não, vocês não podem ficar aqui’. Ficam essas 15 pessoas e elas se ajeitam, mas no dia seguinte vêm 15 mais. A dona da casa e os vizinhos vão reclamar, porque é superlotação. A situação econômica do Brasil não está muito boa. Tem brasileiros vivendo na rua sem emprego e ainda vêm pessoas de fora, sírios, venezuelanos, congoleses. É difícil para o país.”
BRASIL: UM NOVO LAR
A respeito de viver no Brasil, a libanesa diz se sentir “em casa”: “Se você está em um país que nos acolheu, está dando trabalho, educação para os meus filhos, atendimento de saúde e posso ir para uma farmácia comprar um medicamento e se não tiver dinheiro vou para o SUS. Eles dão, se eles podem dar. Eu acho que isso é importante. Acho que é a pessoa quem faz disso um lugar para viver”.
Ao chegarem ao Rio para morar, o idioma foi um dos desafios. “Você pode ter todos os estudos do mundo, que a língua sempre vai ser uma barreira quando você passa dos 30, 40, 50 anos”, afirmou Maria. “É uma barreira, mas não afeta você de trabalhar, de fazer o seu dia a dia. Quando nós chegamos sempre íamos às praças, na rua falava com as pessoas, fizemos amizade com elas. Elas sempre corrigiam palavras erradas e falam o sotaque carioca, o ‘shh’, que meu filho já fala.” Para José, o fato do português ser próximo ao espanhol ajudou no progresso: “O português é muito parecido com o espanhol, então se você entra no processo de estudo, entra no dia a dia, procura conversar com brasileiros, procura fazer leitura, na língua, acho que você vai pegando o idioma. Se você entra em uma metodologia de ensino, de aprendizado do idioma, vai pegar”.
Moradores da Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, eles atualmente trabalham com culinária em uma feira de refugiados, a Feira Chega Junto, e cozinhando banquetes feitos por encomenda. “Percebemos que se só ficássemos com comida libanesa as pessoas às vezes iriam ligar só uma ou duas vezes, no máximo. Então, foi quando decidimos botar comida árabe e mediterrânea. Temos pratos gregos, espanhóis, banquetes personalizados”, explicou Maria. “Os trabalhos fortes começam a partir de quinta-feira até o domingo. Segunda, terça e quarta são dias muito mais calmos, a gente vai fazer qualquer coisa que a gente tenha que fazer no banco, fazer mercado, relaxar, porque já na quinta começa o trabalho forte para entregar as encomendas. É diferente, mais forte no final de semana, quando na Venezuela eram nossos dias de relaxar. Aqui é ao contrário. Trabalhamos aos finais de semana.”
Existiam duas opções de moradia para o casal: Brasil e Líbano. “No Líbano era mais difícil o idioma, o jeito de vida. Era uma mudança mais radical que aqui no Brasil. Em relação aos nossos filhos, principalmente”, disse José. Maria contou que o país tinha traços venezuelanos: “O Brasil de quando nós chegamos, em 2014, era muito parecido à Venezuela de nossa adolescência, então achei que seria mais fácil”.
A ANTIGA VENEZUELA
O Líbano não era uma alternativa aleatória. Maria tem descendência libanesa. Seus pais foram do país do Oriente Médio para a Venezuela na metade do século passado. “Eles buscavam melhoria e um futuro melhor para sua família”, afirmou. “Meu pai saiu precisamente por estar começando uma guerra. Então, acho que eles, olhando essa situação, pensaram que talvez os filhos não iriam poder ter um bom futuro vivendo lá, logo decidiram sair.”
“Meu pai chegou com 45 anos. Minha mãe chegou à Venezuela 10 anos depois, com 43. Naquela época, na Venezuela, não existia o refúgio como tal. Eles não foram obrigados a sair do seu país, ele foi por livre escolha, procurando um futuro melhor para os filhos, mas é quase como um refúgio. Só que naquela época era mais fácil ajeitar os documentos para morar legalmente lá do que nesta época agora”, acrescentou a libanesa.
“Era uma realidade, como país, bem diferente. Tinha segurança, era uma área tranquila, não tinha nenhum tipo de problema para sair de casa de noite. Tudo bem tranquilo. Aos fins de semana, saíamos para jogar futebol, muito parecido com o Rio de Janeiro. Sempre com algumas dificuldades, mas você tinha sensação de segurança maior do que a próxima dos anos 1999, 2000, 2005. Foi uma escala de violência que você já não tinha nenhum tipo de sensação de segurança real.”
Dois partidos políticos trocavam de lugar como se fosse uma regra. Maria reforça que, na época, era comum chamar a Venezuela de bipartidária. “Cinco anos ganhava um partido e os outros cinco anos ganhava o outro partido. Eles chamavam de Venezuela Saudita, porque tinha muito dinheiro na rua, então para o comércio era muito bom. Lá no Natal e final de ano eu abria loja sete horas da manhã e fechava nove da noite”, relembra Maria. “O governo dava facilidade para as pessoas comprar, muito crédito no banco. Essa época bipartidária foi boa, exceto a corrupção que sempre teve nos partidos políticos, mas foi boa.”
Na cidade de Güigüe, eles trabalhavam em uma loja de informática. Hoje em dia, o irmão de Maria é quem trabalha lá. Ela contou que na inauguração as pessoas ficavam na porta, por volta das 7h30, para perguntar se iria abrir e que o empreendimento “era um sucesso”. Ela investiu no negócio quando ainda era solteira. Ela é técnica de informática e ele é formado em Engenharia Civil. “Eu comecei a estudar Medicina, só que a Universidade parou por um longo tempo, então eu comecei a fazer um curso de enfermagem. No curso de enfermagem, tínhamos que fazer o estágio no hospital do governo e eu não gostei muito do jeito que os médicos tratavam os pacientes”, explicou Maria.
O RELACIONAMENTO
Inclusive, foi através da internet que o casal se conheceu, em 2000. Maria tinha 35 anos de idade e José entre 31 e 32. “Eu ficava na loja e tínhamos poucas máquinas, poucos computadores. Eu ficava olhando as pessoas falando pelo chat e ficava lá sem fazer nada, então uma vez eu pensei ‘vou entrar em um chat’, e começamos a nos falar’”, contou a técnica.
O casal recordou que o primeiro encontro reservou muitas risadas. “Eu fazia a limpeza e manutenção na sexta e todo meio dia eu subia para o apartamento para botar comida à mesa para meu pai e irmão comerem. Minha mãe já era falecida. Eu subi e, 15 minutos depois, meu sobrinho me ligou dizendo ‘tia, aqui tem um cara querendo falar com você’, eu falei ‘quem?’, ‘Ah, um tal de José’. Eu falei ‘o quê? Impossível! Não pode ser!’. Eu estava com roupa de limpar. Eu queria estar mais bonita, mais magra, então eu botei a comida e desci pensando ‘esse cara é maluco! Como que chega sem me falar nada’, e quando eu cheguei ele estava parado com uma rosa na mão. Primeiro, que eu falei para ele ‘você mentiu’, ‘você fez trama para mim’ e ele ‘não, fica tranquila’. Além disso, a preocupação, porque meu pai e meu irmão iriam saber que um garoto que eu não conheço foi me conhecer”.
Ela também contou que o pai dela anunciou para todos os familiares do seu relacionamento: “'Maria tem um namorado'. Depois os parentes viram. Ele era uma pessoa muito tranquila, muito educada, deu tudo certo. Eles o aceitaram. Se estivesse na rua e eu o visse acho que não teríamos nada, porque tínhamos costumes diferentes”.