um passeio pelas lembranças e afetos de Pirajá Bastos
MEMÓRIAS DE CIRCO:
MEMÓRIAS DE CIRCO:
Pirajá Bastos é um homem que tem circo no sangue. É figura representante de um época que não existe mais, em que tendas coloridas se espalhavam por cantos inalcançáveis e gente que vivia do riso e do espanto perambulava por estradas e ferrovias — e isso ainda existe? — carregando sonhos de um Brasil antigo. Um outro tempo inclusive de se viver. Monta e desmonta. Trabalha fim de semana, descansa quando dá. Um endereço por temporada, por mês, por semana. Cada cidade uma cor e um traço diferente, um jeito de falar. Mas nada disso realmente importava. Quando abrem-se as cortinas e o mestre de cerimônias anuncia o espetáculo, os olhos e o coração só querem, mostrando de um lado e sentido do outro — a magia que acontece no picadeiro.
E Pirajá já é conhecedor experiente dessa magia. Um senhor de 83 anos, artista desde os dez e parte da quarta geração de uma família de donos de circos que se arriscavam em malabarismos dentro e fora da lona. Sua vida é uma história intensa que conta junto a trajetória dessa arte no país. Tão intensa que, até hoje, Pirajá dá aulas na Escola Nacional de Circo, no estado do Rio de Janeiro, onde mora com a família. É um dos poucos de sua geração que conseguiu vender seu próprio negócio e ainda assim seguir com a paixão que o guiou durante anos e anos.
Seu Pirajá no interior do trailer onde já morou, mas que agora é serve como lembrança no quintal da família Bastos. / Foto: Bárbara Martins
No fundo da casa fica um trailer antigo. Ainda é possível ler o nome “Picadilly” em enormes letras azuis cercadas de estrelas pintadas de vermelho. Foi o circo de Pirajá. A sede ficava na rua Getúlio de Moura, em Nilópolis, como indicado no convite que era espalhado em cada nova cidade convidando prefeitos e autoridades para os espetáculos. Já o público geral recebia a novidade do circo pelas propagandas emitidas por um fusquinha de som que circulava pelas ruas.
O bisavô teve circo. O avô teve circo. O pai também. Mas, para Pirajá, toda a coisa de circo ficou mais forte com o segundo, Francisco Azevedo, o palhaço Belecho — que “ninguém sabe o porquê do nome”. “Ele era apaixonado por circo. Essa foi a válvula de escape... Eu fui um dos netos que me criei junto dele, eu tive muitas histórias, aproveitei o vovô ao máximo.” E, com histórias de amor dignas de palco, surgiu no Nordeste a família que o Francisco criou com a Rosa, filha de um padeiro paraibano.
Seu Pirajá ao lado de Dona Rita: a grande companheira, amiga e grande amor de vida. / Foto: Bárbara Martins
Juntos, os dois fizeram crescer um circo completo, carregado pelos estados em lombo de burro. “Ele carregava aquele material, pano, cozinha, roupa dos artistas, aí chegava e pegava só a madeira mesmo, fazia aquele circo. Aí, os filhos foram crescendo e ele começou a organizar o circo com arquibancada, com cerca, com a frente de circo, lona em cima. Meu avô amava, adorava... Ele era louco pra vir para o Rio de Janeiro e para São Paulo, falava que o celeiro de artistas brasileiros era Rio e São Paulo, onde tinha os teatros. No Nordeste eram aqueles cirquinhos pequenininhos.”
E vieram. Deixaram tudo para trás e trouxeram apenas as roupas e os filhos para recomeçarem. Os filhos ganharam independência e foram conquistar seu espaço. Foi então que Agostinho — um palhaço por acaso — se tornou protagonista de mais um amor de bastidor circense que fez nascer Pirajá, o mais velho de sete irmãos, quase todos artistas.
“Você acredita que, no dia que nós fomos pro nosso quarto, na nossa casa, nós achamos o quarto grande pra caramba?”
A própria história de amor de Pirajá também tem os holofotes voltados para o circo. Rita, que se encantou com o jeito do palhaço-malabarista, largou sua profissão de contadora para viver uma vida nômade, que envolvia rematricular o filho e os sobrinhos em uma nova escola a cada cidade visitada — em um período que durava cerca de 15 dias — e se esforçar para manter o espetáculo em um mesmo lugar no fim do ano para que eles pudessem fazer as provas finais. Depois da aposentadoria dos picadeiros, Pirajá se surpreendeu com a nova casa: “Você acredita que, no dia que nós fomos pro nosso quarto, na nossa casa, nós achamos o quarto grande pra caramba? ‘Ih, Rita, o teto tá muito alto’.” Foi uma vida inteira em trailers e espaços pequenos. Imenso era o circo e suas possibilidades.
Pirajá se considera um homem de sorte. “Com o circo, nós passamos uns perrengues, mas graças a Deus nós tivemos um final feliz. Tenho com meu filho uma casa de praia, tenho minha casa própria, meu filho tem a empresa dele, netas estudando, precisa ser milionário?” Pirajá já é rico nas histórias que construiu e nos sorrisos que conquistou em cantos distantes da felicidade. Até hoje, ele recolhe toda a magia que espalhou. Uma aluna pernambucana contou: “Tu és figura encantadora, iluminada, cheia de energia e alegria. Muito bom conhecê-lo.”
E, de fato, é difícil não concordar.