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"MEU NOME NÃO É EMPREGADA"

Maria da Penha Alves Cal Monteiro tem 72 anos. Sonhou ser enfermeira, mas aos 8 já trabalhava como empregada doméstica, função que desenvolveu por 64 anos.

Por Caroline Almeida

Os passos curtos caminham apressados de lá para cá. Os dedos negros, diminutos - quase sem marcas do tempo -, manejam a panela no fogo, alcançada por um banquinho. De relance o olhar ligeiro e ouvido atento capta qualquer sinal de perigo que pode ocorrer aos seis irmãos. Sinais sutis de quem não teve infância. Desde os cinco anos Maria da Penha Alves Cal Monteiro, Dona Penha, como é conhecida, cuida dos outros. Aos oito anos se torna responsável pela casa da primeira professora.
 

Toca a campainha 

 

A porta se abre e dessa vez é Dona Penha que recepciona as convidadas. A vaidade é exibida no cuidado com a aparência: tiara na cabeça, brincos na orelhas, anéis nos dedos, vestido longo e tão logo a queixa: está para fazer as unhas dos pés.

Dona Penha foi criada com os irmãos na casa colonial da avó em Mimoso do Sul, Espírito Santos. A mãe, Eunice Alves, aos 18 anos deixa a filha mais velha recém-nascida sob os cuidados da avó para trabalhar como empregada doméstica em Copacabana, bairro nobre do Rio de Janeiro. Não tarda a vinda dos outros irmãos para que Penha aos cinco anos fique responsável por eles e na ajuda das atividades diárias da casa. Eduardo Salvador, o pai que trabalha como caminhoneiro, pouco vê os filhos. De recordação resta à Penha o carinho sentido pelo pai por conter a imaturidade e a falta de vínculo da esposa com filhos.

 

“A gente vivia como rico, tinha do bom e do melhor. A melhor roupa, a melhor casa, a melhor alimentação”, relembra a infância. Mas as boas memórias se esvaem quando a vida farta dá vazão a penúria na cidade maravilhosa. Aos seis anos a família é forçada a abandonar a cidade natal em decorrência de um desafeto do pai com um amigo. Sempre de “orelha em pé” ouve a conversa dele com avó. Jurado de morte, a grande família migra e passa a sofrer com as mazelas da metrópole.


O espaçoso terreno em que fica a casa colonial de madeira cede a uma pequena, colada a outras, em um lugar recém ocupado em Vila Vintém, Zona Oeste do Rio. Dali, em 1953, se deslocam para Engenheiro Pedreira, local onde a avó parteira cria os oito netos, seis irmãos de Penha com mais dois primos. O ofício que exerce no Espírito Santos continua como principal fonte de renda da família.

“Meu sonho era me formar, ser enfermeira, tomar conta de cachorro e ter uma casa. O tempo vai levando a gente, né? Graças a Deus o cachorro eu consegui. Não deu para estudar, para ser alguém, porque eu tinha que ajudar minha avó a criar meus irmãos”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 


Tem que ter pique!

 

A inquietação de Dona Penha é um espelho da avó. De casa em casa a parteira, como de costume à época, traz para a moradia animais vivos ou um punhado de alimento. Porco, frango, arroz, feijão, carne seca é o pagamento pelos serviços prestados. Os afazeres domésticos, aprendidos atentamente por Penha desde nova, se estendem como fonte de renda complementar da família. Para ajudar a avó, o gosto pelos estudos é trocado pela dupla jornada de trabalho com serviço de doméstica prestado para a primeira professora. 

 

“Ela foi e perguntou à minha avó se ela deixava eu trabalhar para ela porque estava precisando de uma pessoa para poder dar aula. Aí então eu parei de estudar e fiquei sendo empregada na casa dela”, conta Penha. Dois quilômetros na ida e dois na volta separam a casa de Penha da atual patroa. Enquanto dá aula a aluna cuida da casa da ex-professora. A alfabetização restrita à 2ª série possibilita Penha a ler e escrever pouco, como assinar o nome e anotar endereços.  

“Com oito anos tinha que tomar conta da casa e de uma criança. O filho dela era pequinininho, acho que tinha uns oito meses. Eu cuidava da criança, cuidava da casa e engraxava a bota do marido dela que era do exército. E assim a gente foi vivendo ajudando a minha avó com um dinheirinho”

No entanto, o acordo verbal das atividades prestadas no trabalho na prática dá lugar à exploração. Penha conta que a sogra da patroa pede para que pegue inhame para dar aos porcos em uma vala imunda com animais transmissores de doenças. “Eu ia mas com tanta raiva... Era o tipo de coisa que eu fazia que eu não gostava porque era muito nojento, mas eu tinha que fazer”, se queixa a ex-empregada doméstica. 
 

 

A Herança

 

Acorda antes dos patrões. Dorme depois deles. Acordam ao som das xícaras. Dormem ao som da louça sendo lavada. É no quarto externo anexado à casa que Penha descansa entre o final de uma jornada e o início de outra. A distância de sua moradia do trabalho obriga que ela durma na dependência, no “quartinho da empregada”. Nessa época a liberdade era conquistada a cada 15 dias. Antes da folga ajeita a louça do almoço de sábado. Na segunda, acorda às 4 da manhã para na estação de Japeri voltar à rotina de trabalho com serviço em dobro. 

 

A adolescente sente a exaustão física diariamente que chega ao fim tarde da noite. O cansaço a exime de dedicar tempo para si, qual não faz grande questão. “Era muito difícil eu sair com uma amiga, ir ao cinema, namorar, era muito difícil, era cansativo”, relata Dona Penha. A memória, que sempre recorre em primeira pessoa, guarda no corpo as dores do desgaste físico. Nem mesmo a mielite, inflamação na medula espinhal, a afasta do trabalho. 

 

A necessidade de ajudar a avó posterga o tratamento agravando a enfermidade. O vigor juvenil cede a gemidos na velhice. Cada movimento é calculado para evitar as dores. “Agora o dinheiro que eu posso passear, viajar, não dá, tem que fazer tratamento na coluna. É rpg, é pilates, é fisioterapia, é acupuntura, não tem como passear e viajar, tem que cuidar da saúde”, reclama Penha.  


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Ô empregada, dá o meu café. Anda logo!”

 

Ao pisar o pé em uma nova casa Dona Penha nunca teve uma recepção tão surpreendente. "Ô empregada, dá o meu café. Anda logo!” escutou logo de pronto do filho do patrão de nove anos. “Olhei para cara dele, fiquei parada, falei para ele: bom dia! Digo, olha, primeiro: o meu nome não é empregada. Recebi na pia batismal, o que minha avó me ensinava - eu nem sei se tava falando certo ou errado - meu nome é Maria da Penha Alves”, avisa, acrescentando: quando você se dirigir a mim, por favor, tenha mais um pouco de educação. 

 

Os afazeres domésticos aprendidos com a avó são acompanhado pelas respostas dadas na ponta da língua a qualquer sinal de desaforo. Além dessas, Penha conta das situações de “aperto” e “perturbações” que vive por parte dos patrões. “Mulata muito bonita”, “mulata muito gostosa” ou mais ainda incisivo com tapas na bunda, são os assédios que ela sofre quando nova, parte da rotina de trabalho em algumas casas. 

“Eu nunca tive medo de nada disso. Sempre enfrentei e sempre resolvia os meus problemas sem as patroas saberem, sem minha mãe saber, sem nada disso. Só contava se eu quisesse contar, sempre me defendia”, afirma a ex- empregada doméstica. Segundo Penha, o aval das atitudes dos patrões vem do poder do dinheiro. Quem é assediada fica refém do emprego que com medo de ser demitida engole o grito. Sem amarras, ela faz dos objetos que maneja seu escudo. 

 

"Porque antigamente quando a gente trabalhava em casa de família, os patrões tinha essa mania, né? Se gostasse diz 'opa!' Mas a escravidão já acabou há muito tempo. Antigamente, as escravas se submetiam a isso, mas, não. Comigo não! Violar isso aí não funciona. Brigava e discutia, passava a mão em qualquer coisa que eu tivesse na frente e tacava em cima para me defender dos cretinos” 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Eu digo: trato!” 

 

Desde de 1971 Dona Penha presta serviço para os Cal Monteiro. A familiaridade com que lembra o nome e sobrenome para quem trabalhou é o espelho da boa relação de amizade que ao longo dos anos sempre fez questão de cultivar com os empregadores. Como babá, cuida das crianças com olhar materno, conquistando dos patrões a confiança da educação e responsabilidade pela criação dos filhos. Com apenas dois meses, Penha conhece sua primeira “filha do coração” que a ela soma-se mais um de uma outra família para quem trabalhou por anos. São seus únicos filhos. 

 

O cuidado com a criança, que tinha problema no estômago, logo gerou nela o sentimento de zelo. “Magrinha... morrida de pena. E eu: meu Deus! coitada dessa criança. Cuidava dela com carinho”, relembra Dona Penha do encontro com sua filha. A segurança no trabalho vem da longa experiência que tem cuidando dos irmãos. “Poxa, eu criei meus irmãos, eu tomei conta de SEIS crianças, será que eu não sei tomar conta dessa daqui? Tirei aquele negócio de água fervendo, de roupa fervendo, de chupeta fervendo, eu sei que a garota ficou ótima. Com nove meses as pernas dela era desse tamanho e eu cuidando dela direitinho”, se orgulha.

 

Entre idas e vindas sai da casa em definitivo quando a menina de 15 anos já sabe se virar sozinha. Mas o laço de mãe e filha, criado ao longo dos anos, não permite que se separem. “Tamo junto até hoje. É festa, é aniversário de formatura dela, quando ela se formou médica, qualquer coisa que acontece na vida dela ela me liga”, enalte Penha a relação com a família. 

 

A Proposta 

 

- Penha, você não quer casar com o papai? Porque a gente já conhece você, você já tá há muitos anos na nossa família e a gente sabe que você trata com carinho, com amor. 

 

No aniversário de 91 anos de “Seu Cal”, avô de sua “filha do coração”, Penha é pega de surpresa com uma proposta de casamento com o ex-patrão. "A filha dele falou: eu já estou cansada de tomar conta da casa do papai e do meu filho. Eu ajudo a levar as crianças na escola e tem meu consultório...’. Aí eu digo: tá, vamos ver”, narra Penha relembrando que acreditou ser brincadeira a proposta.

 

A intimidade dos anos de convivência com os membros de uma mesma família faz com que ela conheça muito bem a personalidade para quem trabalhou. Não tarda outra festa para que a proposta seja reiterada. Com desconfiança, consulta a opinião da “filha do coração” que com sorriso lhe responde: “Olha Penha, eu acho uma boa porque eu sou muito preocupada com você. Quando entra nas casas dos outros não tem uma carteira assinada, você não exige nada”, relembra a fala da filha. 

 

Nas casas em que trabalha Dona Penha prefere manter com acordo verbal a quantia a ser paga mensalmente com base no valor de um salário mínimo. "Eles não assinavam minha carteira, mas eu recebia direito. O meu 13º, recebia minhas férias, só não assinavam a carteira. Nas casas onde trabalhei eles pagavam direitinho. Eu não pedia como 'é um direito meu’, eles me davam”, comenta Dona Penha. Ela recorda que logo após 1972, data de aprovação dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas, teve a carteira assinada, o que se restringiu a apenas três casas, dos 64 anos de profissão. 

“Colocar a pessoa na justiça pra quê, gente? Que besteira! Eu acho que vale mais uma amizade, como graças a Deus eu tive bem até hoje com todas as pessoas com quem trabalhei que não tem queixa de mim nem eu tenho queixa deles. Não vale a pena você estragar uma amizade por causa de um dinheiro”

 

 

 

 

 

Nascida para cuidar. Penha casa-se

 

No dia casamento ao invés dos votos tradicionais Dona Penha propôs ao futuro marido companheirismo, dedicação e carinho. “Foi praticamente um arranjo. Para mim foi ótimo porque como eu sempre trabalhei em casa de família nunca tive carteira assinada”, confessa Dona Penha que durante nove anos cuidou do ex-patrão como um filho.

 

Aos 91 anos ouve dele que não serve para mulher nenhuma. Nas breves falhas de memória, o ex-patrão não esquece a paixão e Penha as atitudes de assédio. “Ele era assanhado, bem assanhado. Passei um aperto com ele dentro de casa. Ele ficava atrás de mim o tempo todo me perturbando”, lamenta relembrando a época de quando trabalhou na casa do único marido.

 

Como cuidadora-esposa Penha recebe um salário da filha do recém-marido para tomar conta dele e da casa. “Eu casei com ele e ela começou a tomar conta de tudo. Pagamento dele, as pensões, tudo era ela que tomava conta”, reclama a esposa. Embora casada Penha continua a fazer bicos lavando roupa e fazendo comida para complementar a renda e suprir as necessidades básicas que faltam ao idoso.

 

Falecido em 2016, ela diz que a herança deixada pelo marido são as dores nas costas. Atualmente, recebe a pensão de professor universitário e operador de máquina que juntas somam pouco mais de R$ 6.000,00 reais. “É horrível ter vontade de comer alguma coisa e não ter dinheiro para comprar. Hoje em dia não. O que quero, tô com vontade de comer isso, eu vou lá e compro. Não quero fazer comida hoje lá em casa, vou no restaurante e como”, fala satisfeita.

 

A doméstica que só pôde desfrutar da própria vida aos 30 e poucos anos, após o falecimento da avó e com os irmãos criados, agora com todos mortos cuida de si. “Adoro morar sozinha. Tem gente que tem problema de ‘ah solidão, não sei o que, tem medo’. Eu não!”, afirma com veemência Dona Penha que faz da televisão sua melhor companhia. 

Donha Penha olha pela janela do quarto
Mãos de Dona Penha sobre a mesa
Os passos de Penha
“Porque é negro, gosta de samba, gosta de cerveja, de pagode, eu sou diferente"

Por Laís Carregosa 


Dentre os 117 países pesquisados pela Organização Internacional do Trabalho, o Brasil emprega o maior número de empregadas domésticas.

1 A CADA 4

trabalhadores domésticos tem carteira assinada.

92%

são mulheres

+60%

são mulheres negras

AVANÇO DA LEGISLAÇÃO

1972

30 anos após a CLT, a Lei Federal de nº 5.859 reconhece a profissão. A Lei deu direito ao registro do contrato de trabalho em carteira profissional.

2001

1988

A Constituição Federal garantiu alguns direitos às empregadas domésticas: salário mínimo, 13º salário, férias anuais remuneradas, etc.

A Lei 10.208 tornava facultativo ao empregador recolher o FGTS.

2006

2013

A PEC de abril/13 estabelece a jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais e dá o direito a trabalhar em local onde sejam observadas todas as normas de

higiene, saúde e segurança, entre outros direitos.

A Lei 11.324, entre outros direitos, veda descontos ao salário da empregada por fornecimento de alimentação,  vestuário, higiene ou moradia.

2014

A Lei 12.964 estabelece multa para o empregador que não cumpre a Lei.

Luta por direitos e organização de classe: Uma entrevista com o presidente do Instituto Doméstica Legal

Por Laís Carregosa

Mario Avelino é presidente do Instituto Doméstica Legal, organização não-governamental sem fins lucrativos, criada em 2009 com o objetivo de melhorar as condições do trabalho doméstico. 

 

Equipe: O que foi conquistado com a aprovação da PEC das Domésticas?

 

Mario Avelino: Até o dia 31 de maio de 2015, porque a lei que regulamenta o emprego doméstico foi sancionada em 1 de junho de 2015, a empregada não tinha seguro desemprego, não tinha fundo de garantia obrigatório, não tinha salário família, ou seja, ela tinha direitos parciais. Na minha opinião, é considerado que ela tinha um subemprego a nível de direitos trabalhistas, ela não tinha nem a metade dos direitos que o trabalhador de uma empresa tinha. A partir de 1 de junho de 2015, ela passou a ter todos os direitos de um trabalhador de empresa, com exceção do abono do PIS. Já um direito que ela tem, mas que é diferente ao trabalhador de uma empresa, é o seguro desemprego. Enquanto o trabalhador de empresa tem direito a até 5 parcelas do seguro desemprego, de acordo com a sua média salarial, a doméstica tem direito a até 3 parcelas e sempre de um salário mínimo federal, independente se ela ganhar mais que um salário mínimo. Então o que a empregada conquistou os  direitos plenos trabalhistas, direitos mínimos que todo trabalhador brasileiro tem, garantidos pela CLT.

 

E: Essa profissão tem certas características que não são comuns às outras profissões urbanas. A empregada doméstica tem acesso a um espaço íntimo, ela é da casa, mas ao mesmo tempo ela é empregada, tem essa questão escravagista também. Esse tipo de relação no espaço doméstico foi um obstáculo para o avanço da legislatura?

 

MA: Na minha avaliação, de um lado, sim. Porque, se olhar o Congresso Nacional, sem nenhum preconceito ou discriminação aos parlamentares brasileiros, em geral todos eles são empregadores domésticos. E nesses anos de luta, porque a luta para chegar em 2015 com direito pleno começou a ser discutida em 2010, eu estou generalizando, mas às vezes você via que havia resistência porque a pessoa ignorava a coletividade, ele pensava ‘ah, eu também sou empregador doméstico’. Então, ele estaria onerado no custo como empregador doméstico, uma visão muito curta para um parlamentar. Acho que por um lado esse foi um fator que gerou um pouco de desgaste, mas não o principal fator. 

 

Agora, em uma casa a doméstica às vezes não tem um chefe imediato [a quem responder], toda a família palpita ali. Outra característica do emprego doméstico é que ele é muito frágil. Porque caso qualquer coisa que a confiança, o empregador doméstico não pensa duas vezes, ele demite. É raríssimo o empregador demitir a empregada e querer que ela cumpra o aviso prévio, que é um direito do empregador. 

 

Aí vem o terceiro fator, [a profissão] cria laços familiares. Tem uma frase famosíssima no emprego doméstico, que eu escutei várias vezes de empregadores: eles não falam que a Maria faz parte da família, eles falam que a Maria faz até parte da família, e o “até” é até o dia que ela está trabalhando. No dia que arranhar aquela relação, ela é demitida. 

 

Outro aspecto também, não existe fiscalização trabalhista de fato no emprego doméstico. Um dos direitos garantidos pela Constituição Federal, no artigo 5º, é que para alguém entrar na sua casa, ele precisa da sua autorização. Então vamos supor que haja uma reclamação trabalhista, em uma empresa, o fiscal vai lá e cumpre o seu papel, mas para alguém entrar na sua casa, você deve autorizá-lo. Então não há, de fato, fiscalização do emprego doméstico. Isso cria mais um impedimento para as leis trabalhistas, quando descumpridas, serem mais observadas ou cobradas. A fiscalização do emprego doméstico é na realidade orientativa e convidativa. 

 

E: É possível relacionar a diferença de tempo entre a aprovação da CLT e a primeira lei federal das empregadas domésticas a uma herança escravocrata?

 

MA: Sim. A CLT foi criada na década de 1940 e ela garantia direitos mínimos ao trabalhador. Na primeira lei [das empregadas domésticas] de 1972, a empregada não tinha nem um terço dos direitos que o trabalhador de uma empresa tinha. Então, isso vem de uma herança escravagista. A CLT não privilegiou o trabalhador doméstico desde a sua criação justamente por isso. Em 1988, na nova Constituição que vigora até hoje, a empregada conseguiu avançar alguns pequenos direitos, mas a grande resistência do Congresso era essa cultura escravagista. Em 2010 é que veio uma PEC que dá mais direitos. Toda essa evolução lenta, vamos chamar assim, é em função dessa cultura. O emprego doméstico vem da escravatura, quando no século XIX aboliram a escravidão, as mulheres, como trabalhavam nas casas, continuaram trabalhando lá, muitas trocando o trabalho pela alimentação, moradia e vestuário. 

 

No dia 2 de abril de 2013, nós quebramos o elo das correntes da escravatura. O trabalhador doméstico até o dia 2 de abril de 2013, não tinha uma jornada de trabalho, o que, na minha opinião, é a principal característica do trabalho escravo. A Constituição de 1988 garantiu uma jornada máxima de 48 horas semanais para um trabalhador, mas a maioria das trabalhadoras domésticas, não tinha uma carga horária, nas regiões Norte e Nordeste a carga horária média era de 55 a 56 horas semanais. Então a partir do dia 2 de abril, com a promulgação da Emenda Constitucional, a jornada de trabalho da doméstica passa a ser limitada a 44 horas semanais (8 horas diárias) como todo trabalhador brasileiro. Ali, a gente quebra o grande elo da cultura escravagista.

 

E: Como é a organização sindical das empregadas domésticas?

 

MA: O estado de São Paulo tem sindicatos de patrões e sindicatos de trabalhadores, com isso consegue-se fazer algo muito importante que é a Convenção Coletiva de Trabalho. Para haver uma Convenção, há uma negociação entre a parte que representa os empregados e a parte que representa os empregadores. Então, no estado de São Paulo, nós temos uns 10 sindicatos que têm Convenção Coletiva, em que negocia-se os dois lados. Nos demais estados, a organização ainda é muito embrionária. A partir da nova lei, fortaleceu-se um pouco mais a questão de criar sindicatos, mas antes disso já haviam sindicatos, como a Federação de Sindicatos de Domésticas, a Federação das Domésticas da Região Norte e, no estado do Rio, por exemplo, o Sindicato das Domésticas. 

 

A organização sindical das domésticas, tirando São Paulo onde é bem estruturada, é bem difícil porque normalmente não tem o sindicato do patrão, só tem o da empregada. E a Reforma Trabalhista de 2017 deu um golpe no sindicalismo como um todo, não só o das domésticas, ao tornar opcional a contribuição sindical. Os sindicatos das domésticas que já não tinham receita nenhuma, quando a reforma tirou a obrigatoriedade da contribuição sindical, isso desestimulou muito os sindicatos, na minha opinião, deu até um certo esvaziamento. Tirando São Paulo, nos demais estados a organização está muito fraca, porque é uma questão de sobrevivência, ter que ter receita pra poder bancar uma estrutura.

No santurário de Penha há fotos dos "netos do coração"
“Eu gosto música clássica. Soprano, adoro esses tenores, eu adoro"
Mulheres e a desvalorização do trabalho doméstico

Por Isabela Aleixo

O preconceito acerca do trabalho doméstico impediu que a profissão fosse reconhecida e incluída na Consolidação das Leis Trabalhistas do Governo Vargas. A opinião é da economista e professora da Universidade Federal Fluminense Hildete Pereira de Melo. “O pretexto que apresentaram é de que é um trabalho pago por despesas pessoais”, afirma. 

A especialista aponta que a desvalorização do serviço doméstico está atrelado à concepções da sociedade patriarcal: “É considerado um trabalho que as mulheres têm que fazer gratuitamente ao longo da vida. Claro que tem uma questão de raça, além de gênero, mas carrega essa marca da gratuidade do que as mulheres têm que oferecer para dar continuidade à vida”, explica Hildete Melo. A conquista de direitos das trabalhadoras, com o reconhecimento da profissão em 1972 e a PEC das domésticas em 2013, mudou gradativamente a forma como o serviço é visto no país, o que refletiu na arquitetura, como pontua a professora: “A própria arquitetura brasileira já colocava uma discriminação enorme quando havia um quartinho para a empregada. Isso já sumiu, os apartamentos hoje já não têm dependência, mas o preconceito continua e ele está atrelado aos trabalhos da maternidade, de mãe cuidadora”.

 

A economista destaca ainda que com a crise econômica, o serviço doméstico não cresceu, o que segundo ela, significa estagnação e pobreza. “As domésticas não conseguem manter o padrão que elas tinham de empregabilidade. A demanda caiu porque a classe média passou a contratar menos, porque esta crise atinge profundamente a classe média”, afirma. Mas o serviço, para Hildete, é visto como prioritário para mulheres que são mães, nesta mesma classe social: “O drama feminino com relação aos encargos domésticos passa pelas mulheres que são trabalhadoras e têm filhos abaixo de 14 anos, porque o Brasil não tem creche nem escola em tempo integral para garantir que elas tenham onde deixar as crianças”, afirma. Assim, esse cuidado, na ausência de políticas públicas, fica a cargo de empregadas domésticas. 

Por outro lado, outra demanda de cuidado tem surgido nos últimos anos no país. O envelhecimento da população brasileira criou a necessidade de cuidadores de idosos, uma profissão que ainda não tem regulamentação, mas cujos profissionais são vistos como empregados domésticos. “Está surgindo uma nova forma, que são as cuidadoras para a população idosa rica, que é quem pode pagar. Os idosos têm mais renda que os pobres, porque os pobres morrem. Ficar velho é uma primazia dos setores mais abastados”, afirma Hildete Melo, ao contrapor as demandas por serviço doméstico nas classes média e alta. 

Sobre os possíveis impactos da reforma da previdência na vida das empregadas domésticas, a economista destaca que as mulheres, de forma geral, não conseguem se aposentar por tempo de serviço. “O trabalho feminino é o tempo inteiro interrompido. A curva de participação das mulheres é completamente diferente da dos homens. Então, a grosso modo, as mulheres não se aposentam por tempo de serviço. Elas são mais participantes da previdência como pensionistas, não como aposentadas. A renda da previdência da aposentadoria feminina é muito baixa”, explica.

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